Em resposta ao post Deu a louca no Povo, recebi um email muito educado, com a versão do editor. Dividi o texto em blocos para dialogar.
Caro André,
sou Érico Firmo, editor-adjunto do O POVO, quem editou a matéria. Saudabilíssimo o debate público. Acho que nada interessa mais a um jornalista que alguém que leia e pense sobre o que produziu. Dentro desse espírito de debate, vamos lá: você avalia que o Judiciário não fez reforma política. Avalio que fez, sim. Não só eu. Os magistrados, como Marco Aurélio Mello, fizeram afirmações do mesmo teor. O governador José Serra, Arlindo Chinaglia, Tião Viana, um monte de cientistas políticos.
Duvido que eles achem mesmo isso, pode ser uma força de expressão. A reforma não pode se restringir a um item, a fidelidade partidária. Ponto. O Judiciário não legisla. O STF, além do foro privilegiado, tem a função de arbitrar sobre questões constitucionais.
Foram os partidos que queriam segurar seu rebanho para enfrentar o assédio sedutor do governo os primeiros a recorrer ao STF em forma de consulta. Sobre as leis existentes, os magistrados arbitraram que está na Constituição o principio da fidelidade partidária. Unanimidade. Com o novo cenário, o Legislativo reage para legislar. É o jogo democrático, não é crise, não é reforma. Havia uma omissão, agora uma exacerbação.
Enfim. Uma polêmica e opiniões divergentes, que estão retratadas nas páginas do O POVO, diga-se. O POVO não vem com uma versão e apresenta como definitiva. A matéria tem um olhar editorial, sim. Talvez para você, que não concorda, tenha forçado a barra. Mas é um debate da ordem do dia - basta dar uma passeada pela imprensa nacional. E não podes nos acusar de ter escondido o contraditório.
O Povo é um bom jornal porque se expõe ao debate, às vezes até de forma vulnerável. É claro que houve mais de uma versão. O problema foi forçar a barra, mesmo para uma leitura apressada, como nestes destaques. Começa na manchete, de meia página, com impacto visual:
Conflito de interesses
O texto da chamada começa forte:
Brasil vive uma bagunça generalizada entre os papéis desempenhados pelos três poderes.
Bagunça generalizada!!!Não é forçar a barra? Agora, na p. 21:
A clássica divisão dos três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário - nunca foi tão mal-tratada (sic) pelas instituições brasileiras.
Isto é, nunca na história deste país a divisão de poderes foi tão maltratada. Exagerou, né?
Continuemos com o email:
Aliás, sobre o suposto fato de o STF apenas interpretar o texto legal, lembro declaração dada há duas semanas pelo próprio já citado Marco Aurélio Mello: se o STF só interpretou o texto legal, significa que a Constituição só começou a valer em 27 de março. Melo disse isso no contexto de quem defendeu a cassação dos mandatos de quem trocou de partido em qualquer data, posto que a Constituição já estava em vigor, e não houve criação de norma constitucional.
Ainda bem que a fala do ministro foi contextualizada. Do contrário, seria estranho. Para ele, a Constituição é clara. Portanto, poderiam os partidos pedir o mandato de volta de quem houvesse mudado de legenda em qualquer tempo. A maioria achou que estava na Constituição, mas não de forma clara e se decidiu por uma data a partir de sua decisão. Criou jurisprudência.
Adiante:
Quanto ao julgamento dos pares serem funções do Judiciário, essa discussão também está posta, meu caro. Quero creditar a avaliação a uma leitura rápida sua. Observe o quadro da página 25, que aborda, com base em obra do professor Pedro Lenza, divide as funções dos poderes entre as típicas e as atípicas. CPI e julgamento são funções do Legislativo. Mas não sua função típica. Você pode discordar da avaliação, mas não que a discussão é despropositada.
Aqui, um equívoco. O que o repórter disse e foi destacado na edição: "as instruções processuais e julgamentos, métier da Justiça, têm sido..." Eis o ponto. O aposto diz “métier da Justiça” e não "atividade atípica do Legislativo”. Outro equívoco é sobre o quadro, dito como na p. 25, baseado em Pedro Lenza. No exemplar que eu tenho, o quadro é na página 28. Lá, CPI e julgamentos não constam como atividades atípicas. Está igual a este:
Típicas ou atípicas, são funções institucionais de cada Poder. Sem crise. Voltemos ao email
Bom, você pode não ter gostado do "verniz intelectual". Achei original e curioso saber que o Brasil é citado em "O espírito das leis". Discussão estilística, em cujo mérito deixo para cada juízo. Você diz, porém que o repórter não revela qual a tese do livro da qual o Brasil continua distante. Quero, novamente, creditar a leitura rápida. Está lá: "a clássica divisão dos três poderes - Executivo, Legislativo e Judiciário - traço principal do pensamento do filósofo". E, a despeito de louvar a abertura ao debate, a adjetivação "doidice" para classificar o material me parece pesada em excesso.
Curioso certamente. É a terceira vez que é falado sobre minha leitura apressa. Em homenagem a essa repetição, voltei ao jornal. Tive a mesma conclusão, leitura apressada. Sobre Montesquieu. Dizer que a tese de O Espírito da Lei é “a clássica divisão dos três poderes” é reduzir a importância da obra. Ela é composta de seis partes, cada uma com vários livros totalizando 27, com estudos divididos em vários capítulos, principalmente a respeito da lei que dependeria dos princípios e natureza do governo.
Seu texto foi a base para a Constituição que adveio com a Revolução Francesa, é a âncora do constitucionalismo. É fundador da Ciência Política. E não era reducionista. A divisão de poderes talvez seja o tema mais famoso, o tal verniz, não o “principal traço do autor”. O cara foi muito mais que isso. Leitura apressada. Adiante.
Quanto ao Senado ter cumprido sua missão, de Legislar, é fato. Mas a questão que o autor coloca é outra: a Casa, só após a "porta arrombada", votou uma matéria que há muito lá tramita. E, olha, você pode não gostar da matéria - e não gostou, percebe-se. Outra é dizer que o jornalista está distante de seu papel. Não creio.
Talvez seja bom explicar. Nada contra o jornalista. Distante, a meu ver, porque exagera, cria uma tese e tenta sustentá-la até fim, para especular sobre crise iminente ou existente. A discussão é pertinente.
No mais, quero saudar seu trabalho, bem-vindo e necessário para uma função pública como a de jornalista. Não quero ser mal interpretado. É por louvar a disposição e a provocação ao debate que estou entrando na discussão, que considero salutar.
Abraço grande,
Érico Firmo
Editor-adjunto do Núcleo de Conjuntura Jornal O POVO
Retribuo o abraço e louvo a postura do editor, que não é diferente dos demais profissionais do jornal com quem tenho mantido contato por email. A exemplo do ombudsman, cujo email não publiquei por não ter sido autorizado. Neste, senti-me autorizado pelo remetente que se dispôs ao debate público.
Quanto à matéria, tem seu valor, o que estranhei foi o forçar a barra, na minha opinião. Continuo achando que não há crise, que os poderes estão cumprindo seu papel e até de forma mais evoluída do que a clássica divisão de Montesquieu. E precisa evoluir. Também acho que as opções editoriais e gráficas denotam que O Povo adotou a tese da crise. As personalidades ouvidas não falam em crise.
Fechemos com Monstesquieu: "só o poder freia o poder".