O Povo forçou a barra para dar impacto e consistência ao tema da manchete do jornal. Tentou adaptar a realidade a uma pauta concebida na redação. A matéria insinua que os poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário) estariam em crise, um interferindo na função do outro. É uma leitura simplória.
O equívoco começou na capa com o seguinte texto:
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INVERSÃO DE PAPÉIS - O Brasil vive uma bagunça generalizada entre os papéis dos três poderes. Enquanto o Congresso Nacional assistia, o Judiciário deu início à reforma política.
Ora, o Judiciário não fez reforma política. Apenas interpretou o texto legal. O exagero estaria talvez com o Executivo, com seu pendor legislativo através das incontáveis medidas provisórias.
O equívoco continua no título que abre a matéria na p.21 (Poderes em crise de identidade) e se prolonga na linha explicativa:
FREUD EXPLICA - Judiciário fazendo reforma política, Executivo legislando por medidas provisórias e Congresso Nacional transformado em tribunal para julgar os próprios parlamentares
Ora, CPI e julgamento de seus pares são funções do Legislativo, fazem parte do regimento. Onde estaria a crise de identidade?
O jornalista usou todo o texto da p.21 para construir um nariz-de-cera, de acordo com o jargão jornalístico. Juntou alhos com bugalhos, principalmente quando quis dar verniz intelectual à sua peça, citando Montesquieu:
Em sua obra-prima, publicada em 1748, o aristocrata Charles-Louis de Secondat (1689-1755) cita duas vezes o Brasil. A primeira é uma rápida menção à enorme quantidade de ouro que os espanhóis encontraram por aqui. A segunda, quando o francês detalha algumas rotas das grandes navegações. Mas nem de longe nossa história está na idéia central da obra que marcaria a Ciência Política mundial. Quase 260 anos depois, quase nada mudou.
É o nariz-de-cera teaser. Nada revela, suspense. E ainda taca este quase-quase (quase 260 anos depois, quase nada mudou). É mesmo? Quase nada mudou? Onde está então a enorme quantidade de ouro? Poderia ter começado melhor, não?
O Brasil continua distante da tese defendida no livro O Espírito das Leis, do "Barão de Montesquieu", nome que imortalizaria o autor. Pelo contrário. Atualmente, a clássica divisão dos três poderes - Executivo, Legislativo e Judiciário - traço principal do pensamento do filósofo - nunca foi tão mal-tratada pelas instituições brasileiras.
Olha a doidice. O repórter diz que o Brasil continua distante da tese no livro, mas não diz qual a tese. E complementa: "Pelo contrário". Ora, o contrário de distante é próximo. É uma sentença desmentindo a outra, num pensamento trôpego. E ainda maltrata a língua colocando este hífen indevidamente. O samba do crioulo doido continua:
Um bom exemplo disso - ou um ruim, dependendo do ponto de vista -, aconteceu na última quarta-feira, dia 17, na Capital da República. A toque de caixa, o Senado Federal aprovou mudanças na Constituição Federal, abrindo caminho para, finalmente, estabelecer a fidelidade partidária. A decisão foi uma clara resposta ao que tinha acontecido, um dia antes, no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
É um exemplo ruim. O que o Senado fez foi legislar, cumpriu sua função. O jornalista é que parece estar distante da sua.
Apesar de não ter o ato de legislar como função essencial, a cúpula do Judiciário nacional vinha assumindo a dianteira na reforma política no País. O episódio não deixou dúvidas: um mal-estar institucional foi instalado em Brasília.
Como já disse, o Judiciário não faz reforma política. Interpretou o que há na Constituição sobre fidelidade partidária. Só isso, cumpriu também sua função. Questionado, não se omitiu. E não vi nenhum mal-estar institucional. Mas reações pessoais, principalmente dos que poderiam ser prejudicados com a medida. Agora, atente para o exagero.
De impacto e repercussões sem precedentes, o choque entre as funções do Congresso e Judiciário não é um caso isolado.
Dizer que há um choque entre as funções do Congresso e Judiciário já é uma licença poética, mas dizer que esse "choque" tem impacto e repercussão sem precedente já é viagem. Chocou-se contra a sobriedade. Tanto é que a exagerada expressão não está na versão impressa, só na eletrônica. Veja as duas versões.
Na internet:
(para conferir, clique aqui)
Na versão impressa, saiu assim:
Os três personagens aí do lado servem também para simbolizar uma união pelo equívoco. Não foi apenas do repórter, mas também do editor e de outro superior que autorizou a matéria. Quem editou concordou com o teor e deu aval com a escolha da seguinte ventilação do texto.
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Viu só? Quem começou com Montesquieu tinha que meter um vocábulo francês. Métier não existe nos principais dicionários de português (não seria bom traduzir?). Mas isso é só uma casquinha do verniz cultural. O pior é o que ele diz. Gente, prestenção! Há duas inverdades numa só frase - escolhida para ventilar o texto.
Primeiro, fazem parte do mister do Congresso as instruções processuais e julgamentos de seus integrantes. E isso não é de agora. A outra é que não têm sido as principais atividades legislativas. Talvez as de maior visibilidade na mídia.
Para o rumo certo apontou o governador Cid Gomes na p.25:
Hoje, alguns enxergam crise institucional nas relações entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário...
É certo que há exageros, mas não crise, porque estes conflitos são parte do jogo democrático e do aperfeiçoamento do exercício político de nosso País;
Leia o artigo aqui "Poder constitui um freio para o poder"
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