domingo, 21 de outubro de 2007

Deu a louca no Povo

O Povo forçou a barra para dar impacto e consistência ao tema da manchete do jornal. Tentou adaptar a realidade a uma pauta concebida na redação. A matéria insinua que os poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário) estariam em crise, um interferindo na função do outro. É uma leitura simplória.

O equívoco começou na capa com o seguinte texto:

INVERSÃO DE PAPÉIS - O Brasil vive uma bagunça generalizada entre os papéis dos três poderes. Enquanto o Congresso Nacional assistia, o Judiciário deu início à reforma política.
Ora, o Judiciário não fez reforma política. Apenas interpretou o texto legal. O exagero estaria talvez com o Executivo, com seu pendor legislativo através das incontáveis medidas provisórias.

O equívoco continua no título que abre a matéria na p.21 (Poderes em crise de identidade) e se prolonga na linha explicativa:

FREUD EXPLICA - Judiciário fazendo reforma política, Executivo legislando por medidas provisórias e Congresso Nacional transformado em tribunal para julgar os próprios parlamentares

Ora, CPI e julgamento de seus pares são funções do Legislativo, fazem parte do regimento. Onde estaria a crise de identidade?

O jornalista usou todo o texto da p.21 para construir um nariz-de-cera, de acordo com o jargão jornalístico. Juntou alhos com bugalhos, principalmente quando quis dar verniz intelectual à sua peça, citando Montesquieu:

Em sua obra-prima, publicada em 1748, o aristocrata Charles-Louis de Secondat (1689-1755) cita duas vezes o Brasil. A primeira é uma rápida menção à enorme quantidade de ouro que os espanhóis encontraram por aqui. A segunda, quando o francês detalha algumas rotas das grandes navegações. Mas nem de longe nossa história está na idéia central da obra que marcaria a Ciência Política mundial. Quase 260 anos depois, quase nada mudou.
É o nariz-de-cera teaser. Nada revela, suspense. E ainda taca este quase-quase (quase 260 anos depois, quase nada mudou). É mesmo? Quase nada mudou? Onde está então a enorme quantidade de ouro? Poderia ter começado melhor, não?

O Brasil continua distante da tese defendida no livro O Espírito das Leis, do "Barão de Montesquieu", nome que imortalizaria o autor. Pelo contrário. Atualmente, a clássica divisão dos três poderes - Executivo, Legislativo e Judiciário - traço principal do pensamento do filósofo - nunca foi tão mal-tratada pelas instituições brasileiras.
Olha a doidice. O repórter diz que o Brasil continua distante da tese no livro, mas não diz qual a tese. E complementa: "Pelo contrário". Ora, o contrário de distante é próximo. É uma sentença desmentindo a outra, num pensamento trôpego. E ainda maltrata a língua colocando este hífen indevidamente. O samba do crioulo doido continua:

Um bom exemplo disso - ou um ruim, dependendo do ponto de vista -, aconteceu na última quarta-feira, dia 17, na Capital da República. A toque de caixa, o Senado Federal aprovou mudanças na Constituição Federal, abrindo caminho para, finalmente, estabelecer a fidelidade partidária. A decisão foi uma clara resposta ao que tinha acontecido, um dia antes, no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

É um exemplo ruim. O que o Senado fez foi legislar, cumpriu sua função. O jornalista é que parece estar distante da sua.

Apesar de não ter o ato de legislar como função essencial, a cúpula do Judiciário nacional vinha assumindo a dianteira na reforma política no País. O episódio não deixou dúvidas: um mal-estar institucional foi instalado em Brasília.
Como já disse, o Judiciário não faz reforma política. Interpretou o que há na Constituição sobre fidelidade partidária. Só isso, cumpriu também sua função. Questionado, não se omitiu. E não vi nenhum mal-estar institucional. Mas reações pessoais, principalmente dos que poderiam ser prejudicados com a medida. Agora, atente para o exagero.

De impacto e repercussões sem precedentes, o choque entre as funções do Congresso e Judiciário não é um caso isolado.

Dizer que há um choque entre as funções do Congresso e Judiciário já é uma licença poética, mas dizer que esse "choque" tem impacto e repercussão sem precedente já é viagem. Chocou-se contra a sobriedade. Tanto é que a exagerada expressão não está na versão impressa, só na eletrônica. Veja as duas versões.

Na internet:

(para conferir, clique aqui)

Na versão impressa, saiu assim:

Os três personagens aí do lado servem também para simbolizar uma união pelo equívoco. Não foi apenas do repórter, mas também do editor e de outro superior que autorizou a matéria. Quem editou concordou com o teor e deu aval com a escolha da seguinte ventilação do texto.


Viu só? Quem começou com Montesquieu tinha que meter um vocábulo francês. Métier não existe nos principais dicionários de português (não seria bom traduzir?). Mas isso é só uma casquinha do verniz cultural. O pior é o que ele diz. Gente, prestenção! Há duas inverdades numa só frase - escolhida para ventilar o texto.

Primeiro, fazem parte do mister do Congresso as instruções processuais e julgamentos de seus integrantes. E isso não é de agora. A outra é que não têm sido as principais atividades legislativas. Talvez as de maior visibilidade na mídia.

Para o rumo certo apontou o governador Cid Gomes na p.25:

Hoje, alguns enxergam crise institucional nas relações entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário...

É certo que há exageros, mas não crise, porque estes conflitos são parte do jogo democrático e do aperfeiçoamento do exercício político de nosso País;

Leia o artigo aqui "Poder constitui um freio para o poder"

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